Modernismo, antropofagia e tropicalismo

 

 

Com a atual profusão de publicações em torno do decolonial, os alicerces do modernismo da Semana de 22 pareciam estar minados. Centro irradiador cultural que permeou a colonização na América do Sul, o modernismo acolheu em seu cerne o racionalismo que, enquanto emblema, tingiu o imaginário e as relações intersubjetivas, modos de percepção e produção de conhecimento. A disciplina jesuítica no Brasil, nos séculos XVI e XVIII da colonização, se confrontou com práticas ameríndias antagônicas à sua matriz secular: a poligamia, o xamanismo e a antropofagia. Segundo os missionários os indígenas se encontravam decaídos dos pilares civilizatórios. O colonialismo — que validou o conhecimento eurocêntrico como sendo o único1 e refutou formas de saber dos ameríndios —, a colonialidade e o modernismo atenderam às necessidades do capitalismo que explorou os corpos como instrumento de trabalho através da racialização.

 

Por sua vez, o decolonialismo coincide com a provocação antropofágica questionando a matriz religiosa européia. Mas não deixa de questionar também as bases do modernismo.

 

Sabendo ser a retórica do modernismo e a lógica do colonialismo coincidentes, a herança do Manifesto Antropófago — que é amalgamada à Semana de Arte Moderna em São Paulo — é problematizada. Assim o movimento da antropofagia acaba sendo questionado por ser  vinculado ao modernismo no Brasil — sim, podemos dizer que criamos um modernismo próprio.

 

Lucio Agra em seu texto Devorar o Outro2 reflete sobre a antropofagia. A antropofagia se diferiria do canibalismo, por envolver uma prática ritualística que vai além do ato de ingerir carne humana. Para ele a associação que uniu antropofagia e modernismo no Brasil é equivocada. Seria imprescindível desmembrar o movimento de vanguarda do Modernismo de Oswald de Andrade — para alguns reflexo de uma aristocracia branca, machista e aristocrática — da antropofagia do Manifesto Antropófago do também Oswald de Andrade, que segundo Agra foi uma dissidência do primeiro tentando se livrar da patrilinearidade e do racismo.

 

A antropofagia como um “virar de mesa”, como um método crítico criativo, capaz de desmistificar toda tentativa de colonialismo cultural universalista como um instrumento de repressão, já fora defendida como uma necessidade por Hélio Oiticica em O sentido de vanguarda do grupo baiano de 1968.

 

Não há dúvida que a antropofagia se desprende do arcaísmo do modernismo e resiste até os dias de hoje, permitindo desdobramentos e novas reflexões para a arte e a cultura do Brasil.

 

A passagem

 

Visto que a arguição que o Manifesto Antropófago ainda reverbera e tenha adeptos nos dias de hoje encontra ressonância atualíssima nas manifestações de homenagem da passagem de Zé Celso, dia 6 de julho de 2023. Veja-se o rito cerimonial propagado pela mídia que muito se assemelhou aos lamentos fúnebres de quando um pajé muito estimado morre. As suas muitas provações durante sua vida, provações essas que o fizeram ser reconhecido como tal, são relembradas aumentando a potência de seu poder. Rito cerimonial que tornou mais profundo e enraizados os ensinamentos incorporados pelo grupo do Teatro Oficina Uzyna Uzona e adeptos.

 

Zé Celso foi um estandarte do Manifesto Antropófago desde de sua encenação do O Rei da Vela em 1967. Na figura desse artista, dramaturgo e ator, a antropofagia e o tropicalismo estariam sempre imbricados enquanto potência crítica estética e prática de uma reinvenção cultural brasileira genuína. São incorporadas na prática do Teatro Oficina, marcado como um grande terreiro, tradições afro-quilombolas e indígenas transgressoras à matriz religiosa européia. Tradições que o conservadorismo tentou expurgar, até mesmo punir. Mas também são incorporadas nos atos performáticos junto à reinvenção do modernismo de Lina Bo Bardi.

 

A construção do teatro como estrutura física ganhou diferentes contornos ao longo de seus anos de existência: o espaço cênico primeiramente desenhado por Joaquim Guedes, que foi incendiado em 1966; a segunda versão desenhada por Flávio Império em 1967; e o que remanesce na atualidade desenhado por Lina Bo Bardi e Edson Elito3 .

 

A cena do Teatro Oficina de Zé Celso une Antropofagia e Tropicalismo — que estariam mais afinadas às proposições do campo da contra-cultura, da integração arte-vida, corpo-linguagem, comportamento-conceito, obra-espetáculo — e o rigor formal do movimento Concreto dos irmãos Campos. Apesar de conflitantes resistem a um colonialismo cultural como proposições de jogo que desterritorializam  o institucionalizado — o institucionalizado repele qualquer porosidade — e que fazem o político emergir sem ser institucionalizado. Principalmente a Antropofagia e o Tropicalismo exacerbam as práticas “atópicas” libidinais, afetivas das paixões.

 

O espetáculo Roda Viva criado por Chico Buarque em 1968, e encenado no mesmo ano por Zé Celso antes da imposição do AI-5 que acirrou a repressão e a censura nos anos ditatoriais, obteve apenas em 2018 renovação da permissão para ser remontado. Desde que em 1968 surgiram muitas agressões e ameaças de morte aos atores, Chico Buarque interrompeu a permissão para que a peça fosse levada a público4 . A peça não raras vezes foi considerada hostil ao público e era considerada repulsiva por misturar o profano e o religioso em uma mesma personagem. Somente após décadas o espetáculo é remontado no Teatro Oficina Uzyna Uzona com enorme sucesso de público como em 2019, agora em uma versão que lembra mais um convite à união para os enfrentamentos por vir. 1968 e 2019 foram anos marcados por forte repressão política no Brasil. Em 68 o governo ditatorial acirrou o fechamento da liberdade de expressão da cultura e da arte impondo a censura e o de 2019 voltou a reencarnar o aparelho repressor, para dizer o mínimo. Carnavalizar para resistir parecia ser o entoado.

 

A passarela do Teatro Oficina lembra uma passarela de samba, de carnaval. Não à toa as fotografias de Jennifer Glass na maior parte das vezes tentam incorporar com um enquadramento panorâmico de grande angular o coletivo e seus rodopios na passarela, incluindo a estrutura vertical de onde o público assiste. O teatro com sua passarela de fora a fora, conduzindo a cena interior à rua, dialoga com o espaço exterior do entorno urbano, aproximando o bairro, a vida comunitária, da cena artística.

 

A estrutura vertical de andaimes, projetada por Lina Bo Bardi como aproveitamento do terreno estreito, que recebe o público, e permite aos atores escalarem vários níveis acima do que seria o palco, mais se parece às de um sambódromo guardada as devidas dimensões. Como um terreiro de candomblé ou ritual indígena os atores não representam mas antes incorporam com a ajuda da platéia as “entidades” e “aparições”. Para os indígenas a dança longe de ser mera encenação é um acontecimento mítico, vivo, acompanhada de sons como gemido, queixume, gargarejo.

 

Terreiro, samba, carnavalização da performance, banda que permeia o público, parangolé de Hélio Oitica, a celebração do cangaço de Glauber Rocha, ele mesmo também um cangaceiro cultural que queria desmascarar  a utopia do Brasil, para quem no país a vida atravessa o sujeito de maneira violenta. “No Brasil se morre muito no Jardim das Piranhas” dizia Glauber Rocha. Não foram poucos os personagens de Glauber que se armaram. Othon Bastos e Maurício do Valle em “O Dragão da Maldade”; Luiz Maria Olmedo em “Claro”; Pierre Clementi em “ Cabeças Cortadas”: e Geraldo del Rey em “A Idade da Terra”. Esta afronta de um  cangaço cultural, tendo a arte como uma arma que esculpe o espaço social e quer desmascarar o delírio burguês, foi retomada mais recentemente em Bacurau, o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que faz a liga do punk atual ao punk de “Idade da Terra”.

 

Sertanejo, Procissão, Lampião e a turba do banditismo. Um agrupamento em efervescência que resiste a uma sociedade conservadora. Ritos de cura e exorcismos como um chamamento à transitoriedade entre as linguagens, corpos e modos de percepção. Os atores atuam em estados alterados de consciência e o público não raras vezes interage sob efeito de álcool. Não só a vida atravessa o sujeito de maneira violenta, mas também a arte. Longe da racionalidade européia o Teatro Oficina procurou revigorar o “corpo ancestral” para com este alterar a percepção do público e incitá-lo a um movimento.

 

O Teatro Oficina Uzyna Uzona não raras vezes foi citado como um lugar de aprendizagem, de educação informal da performance e da cena. A “Universidade Antropofágica” como Zé Celso se referia ao teatro que completou 62 anos de existência no mesmo endereço: Rua Jaceguai, 520, no bairro do Bixiga. Ou o Parque do Rio Bixiga como ousava reivindicar legalmente os arredores do teatro para a criação de um espaço público com água potável do rio em pleno centro da cidade de São Paulo. Incorporando ao grupo pessoas em situação de vulnerabilidade.

 

As espirais de forte cores pintadas no chão acentuam o rodopio dos atores com suas vestimentas soltas e coloridas em Roda Viva, quase parafraseando a letra da música Roda Viva de Chico Buarque:

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração.

Roda Viva (2019). Teatro Oficina UzynaUzona. Fotografia de Jennifer Glass.

 

Década de 70 e o Tropicalismo

 

Zé Celso nos anos 70 teria dito a Hélio Oiticica que “fazer teatro hoje é arriscar diariamente a própria vida heroicamente.” Para Hélio Oiticica também o ataque ao que se convencionou chamar de Tropicalismo com os músicos dos grupos Mutantes, Rita Lee et all e Novos Baianos, Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Tom Zé e Gilberto Gil — e demais integrantes que se aliaram a Rogério Duprat, músico ligado ao grupo Concreto—, significou o ataque de uma burguesia paulista industrial em ascensão, de um liberalismo bem nutrido, que apesar de se dizerem de esquerda tinham atitudes reacionárias boicotando qualquer inovação. Desde imediato Hélio Oitica relaciona o experimentalismo dos Novos Baianos às artes de ambiente, como uma instalação onde seus instrumentos constariam como objetos. Depois contribuiu para essa associação com a instalação a experiência do grupo com outro meio massivo, além do rádio e das gravadoras de música, e a TV no programa Tropicália ou Panis et Circensis, gravado em um cabaré paulista.

 

O Tropicalismo se empenharia a não se limitar a um esteticismo. Em sua fase inicial se propunha a refletir sobre a condição social e política da cultura brasileira. Não pretendia criar um outro “ismo” ou inventar com “araras” e “palmeiras” uma arte mais popular. As frases paradigmáticas de Caetano “É proibido proibir” ou “eu digo não ao não” seriam elementos semânticos ambivalentes se abrindo a participações e a muitos significados, “negação da negação para se reafirmar”. Elementos que se incorporam a vivências coletivas ou individuais.

 

Zé Celso segundo Oiticica abraçaria a causa mais participativa e social do público.

O termo Tropicália antes de ser uma referência aos Novos Baianos teria sido cogitado já em fins de 66 por Hélio Oiticica, posto objetivamente como um exercício visual. O termo foi usado oficialmente na instalação de Hélio Oiticica apresentada no MAM do Rio de Janeiro no verão de 1967. Tropicália era um labirinto sem saída a ser percorrido. Uma estrutura geométrica fixa, como uma casa na favela, um ambiente “tropical” com araras, palmeiras. “No chão do interior deste labirinto haviam três tipos de coisas: sacos de areia, pedregulhos e carpete na parte obscura” que forçavam o visitante a ter sua percepção deslocada entre a tridimensionalidade dos objetos táteis e a bidimensionalidade da captura de video do exterior do labirinto que “devorava” o visitante antes deste adentrar o espaço sendo projetado interiormente.

 

Experimentação artística e participação política, “Assim a Tropicália teria sido a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, em impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional” dizia Hélio Oiticica.

 

Numa entrevista traduzida em Partisars n• 47 (Paris, Maspero), José Celso explica a relação do Teatro Oficina com o público na década de 70. Ele a descreve como uma luta. O público representaria uma ala privilegiada do país e caberia ao teatro colocá-lo frente à miséria do “pequeno privilégio” obtido por tantos oportunismos, castrações e recalques para incitá-lo a criar um novo caminho.

 

Segundo Roberto Schwarz que analisou a produção cultural brasileira nos anos de ditadura que antecederam o Ato Institucional N0. 5, AI-5, em Cultura e política, 1964-19695 , Zé Celso compreendia que a pequena burguesia não tinha resistido ao golpe militar e teria se aliado à direita durante os anos da ditadura. Para o dramaturgo qualquer consentimento entre palco e platéia seria um erro. Seu propósito era desnudar o público, colocá-lo sem chão. A perspectiva do movimento estudantil dos anos 60 seria determinada por sua origem social do universo pequeno burguês. Segundo Schwarz “De fato, a hostilidade do Oficina era uma resposta radical, mais radical que a outra, à derrota de 64; mas não era uma resposta política”. O Oficina expunha uma posição política com força artística.

Mas num cenário de terra arrasada, o Oficina poderia ser confundido como um aliado ao agressor facista ao exercer uma autoridade sobre o público — por desmembrá-lo enquanto coletivo, praticando uma deslealdade consentida ao expor indivíduos amedrontados da platéia que são tratados com  escárnio pelos outros. O enorme sucesso do Teatro Oficina seria segundo Schwarz devido a desagregação burguesa de 64.

 

As complexidades do cenário de nossos dias colocam questões ainda por serem refletidas. A cultura brasileira nos anos 60 estaria circunscrita a 50.000 mil pessoas, num país que tinha 90 milhões de pessoas. Hoje a população brasileira é de 207 milhões e o universo da cultura abrange muito mais indivíduos do que na década de 70, pois além da popularização da cultura em diversos setores sociais, o que inclui muitos outros grupos, os estados hoje produtores de cultura não se resumem apenas a Rio de Janeiro e São Paulo.

 

Das complexidades de hoje

 

Qual o alcance cultural que a antropofagia como proposição estético-crítica, já não tendo Zé Celso como um de seus estandartes, teria ainda para muito além? Como dar conta das complexidades da cena atual?

 

Vejamos na descrição de Teixeira Coelho como  outro gigante, Glauber Rocha, articula a complexidade da cultura brasileira enquanto o profeta da utópica fusão entre o social e a poética da terra6 :

Messianismo, o Cristo Negro, a memória recorrente de Antônio Conselheiro, o reflexo de Antônio das Mortes, deus e o diabo, Brams o Cristo-antiCristo, dragão da maldade, o povo ausente de “Terra em Transe” e de algum modo recuperado na nova terra. […] Fuga no misticismo religioso? Não: apenas o sentido do sagrado, quer dizer, o sentido de fundação de um mundo, o sentido de crença na criação. O religioso não é compatível com o cínico — e o Glauber de “A Idade da Terra” é também um Glauber cínico, destruidor, zombeteiro, distópico. A máscara do religioso será apenas o modo de adesão à terra. Eventualmente uma tática: Glauber não terá sido desatento ao fenômeno do islamismo, ou à ação da igreja através de suas comunidades, embora não seja esse seu programa.

 

 

A operação antropofágica encobre o mito da procura da origem.  Como diz Jean-Claude Bernadet também discorrendo sobre Glauber Rocha e sobre seu legado em seu texto “A origem e a utopia”7 :

O mito da origem não é apenas uma volta ao passado para encontrar a identidade, ele é projetado como a utopia do futuro, num movimento frequente no pensamento latino-americano. Assim, por exemplo, Benedito Nunes comenta a operação antropofágica de Oswald de Andrade: “Faz-se apelo … a um passado trans-histórico, que confina com o futuro utópico, como aquele passado précabralino que, paradoxalmente, a “antropofagia” Oswaldiana, em 1928, antepõe e pospõe ao presente, e no qual o tempo sem memória de um mito mergulha no tempo esperançoso de uma utopia a realizar.” […] A utopia se constrói pela recuperação da origem jogada no futuro.

 

 

Zé Celso em sua atualização constante se preparava para encenar A queda do céu de Davi Kopenawa e Bruce Alber. Um livro excepcional de narrativa poética, que traz os mitos da criação do mundo e a cosmovisão Yanomami e a possível queda do céu. O céu estaria ameaçado a cair pela ambição dos brancos que exploram a floresta e a terra até extinguí-las. Os brancos, como escreve Kopenawa, não sabem sonhar. E quando sonham, diferentemente dos xamãs que evocam “presenças” e forças da floresta, sonham apenas com objetos que querem consumir.

 

Na mitologia dos indígenas ao norte do Brasil e sul da Venezuela dos Taulipang descrita por Koch-Grünberg em “Céu e terra”8 , apesar do mundo também ser imaginado como uma esfera, ele possuiria camadas. Essas camadas só seriam visíveis para pajés dotados de força xamânica. O  Além seria como uma gigantesca casa comunitária em algum lugar ao leste próximo à Via Láctea. Abaixo de nós, haveria mais de três outras terras com montanhas e rios, animais e plantas, sendo nosso chão o céu desses habitantes. Acima de nós haveria não apenas um céu. Mas em torno de dez céus. O chão de cada um seria o céu da subdivisão abaixo.

 

Na década de 70 não haviam protagonistas indígenas como autores, produtores culturais, artistas e curadores que falassem de seus mitos e cosmovisão sem intermediários. Como hoje podemos citar inúmeros dentre eles Davi Kopenawa e Jaider Esbell.

 

Haja vista a diferença entre o livro Macunaína, o herói sem caráter de Mário de Andrade — um exemplar do modernismo brasileiro onde o herói é um indígena que finge ser zonzo e incapacitado para escapar da instrumentalização do corpo e consequente servilismo ao trabalho e à exploração — e o livro Makunaimã. O mito através do tempo. Este último reencenado na Casa Mário de Andrade em 2018 pelo artista e curador Makuxi, Jaider Esbell9 . Sabe-se que a criação do livro de Mario de Andrade, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter de 1928, bebeu na narrativa de Akuli Taurepang, da década de 1920, que foi transcrita por Theodor Koch-Grünberg em forma de livro: Vom Roraima zum Orinoco, em alemão.

 

Os dois principais informantes de Koch-Grünberg eram Taulipáng Mayuluaípu e Arekuná Akúli. Foram eles que narraram os mitos relacionados ao personagem Macunaíma dos Taurepang (ou Taulipáng como escrito no livro de Koch-Grünberg).

 

Dedicado a Akuli Taurepang e a Koch-Grümberg, o livro de Jaider atribui a autoria a Taurepang et all. Enquanto narrativa resultante das tradições orais e de textos coletivos o livro não poderia ter a autoria atribuída a uma única pessoa. Além das várias vozes dos povos pemon, taurepang, wapichana e macuxi — que segundo  Cristino Wapichana são os herdeiros legítimos de Makunaimã — Jaider inclui também Mário de Andrade como um dos autores, um intelectual que cunhou significativamente o modernismo brasileiro.

 

A adesão à terra é puro chamamento para alguns, e fantasia distópica para outros. A imagem não icônica dos xamãs atrai mentes excitadas por descobrir conceitos que não encontram correspondentes nos usuais termos da estética ocidental. Como pensar sem a filosofia ou o pensamento matemático ocidental? Sobre que bases se dá o pensamento ameríndio? O corpo que nos fala é a presença de um desejo ardente, vociferante, pois em chamas é consciente de sua brevidade.

 

Após a eleição de 2018, Zé Celso achava importante produzir para não estar inerte e questionar o abismo reinante. Como foi possível as pessoas ainda acreditarem em um governo repressor como opção após tantos anos de construção de uma via democrática. Roda Viva sobre este prisma foi um levante. Lá também as imagens icônicas religiosas coexistiam com o cangaço.

 

Busca das origens, rigor concretista, desvio de uma matriz modernista com a licença de criar um próprio modernismo. Agora é rogarmos força para sustentar o céu para que este não desabe sobre nós. Pois a fundação da obra de uma cultura própria ainda está por vir.

 

(Todas imagens são de autoria de Jennifer Glass que gentilmente cedeu o direito de publicá-las.)

  • 1Quijano, Aníbal. “Colonialidade e poder”. In Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria de Paula. (Orgs.). (2009). Epistemologias do sul. Coimbra: Edições Almedina, 73-117.
  • 2Lucio Agra. “Devorar o Outro.” jar-online.net. 30/12/2021. https://doi.org/10.22501/jarnet.0053
  • 3Zoé, Cafira; Mota, Camila. Teatro Oficina: espaço que “devora cabeças”. In Outras Palavras. 16/08/2023. Disponível em https://outraspalavras.net/poeticas/teatro-oficina-espaco-que-devora-ca… Acesso em 21 de agosto de 2023.
  • 4RODA Viva. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento405843/roda-viva. Acesso em: 11 de julho de 2023. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
  • 5Schwarz, Roberto (1978). “Cultura e política (1964-19869). E outros esquemas”. In O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. https://nelic.paginas.ufsc.br/files/2019/04/Roberto-Schwarz-Cultura-e-p…. Acesso em 07 de julho de 2023. Traduzido para o inglês como Schwarz, R. (1992) Misplaced Ideas: Essay on Brazilian Culture. Translated by John Gledson. New York: Verso, 1992.]69)
  • 6Coelho, Teixeira. “A fundação da terra e do cinema. In Folhetim, 22 de agosto de 1982. No. 292. P. 8.
  • 7Bernadet, Jean-Claude. “A origem e a utopia”. In Folhetim, 22 de agosto de 1982. No. 292. P. 9.
  • 8Koch-Grünberg, Theodor. Do Roraima ao Orinoco: Resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913 - Volume III: Etnografia/ Theodor Koch-Grünberg. São Paulo: Editora UNESP, Editora UEA, 2022, 172-173.
  • 9Rondon Guasque Araujo, Yara (2022). Machados de pedra! A quem pertencem? In DAT, https://doi.org/10.29147/datjournal.v7i1.576. Acesso dia 8 de julho de 2023
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Yara Guasque
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Roda Viva (2019). Teatro Oficina Uzyna Uzona. Fotografia de Jennifer Glass
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