ARTE DE INVENÇÃO NO BRASIL DOS ANOS 60/70 

Carlos Ávila Carlos Ávila

Uma nota de lançamento do livro Agra, L.  A síntese imprevista – arte de invenção no Brasil dos anos 60/70 . Curitiba, Ed. Medusa, 2022. 

 

Capa do livro Agra, L. A síntese imprevista – arte de invenção no Brasil dos anos 60/70 . Curitiba, Ed. Medusa, 2022.
Capa do livro: Agra, L. A síntese imprevista – arte de invenção no Brasil dos anos 60/70 . Curitiba, Ed. Medusa, 2022.

 

 

Uma observação certeira do importante crítico Mário Pedrosa: “O nosso passado não é fatal, pois nós o refazemos todos os dias. E bem pouco preside ele ao nosso destino. Somos, pela fatalidade mesma de nossa formação, condenados ao moderno”. Perseguir, estudar e analisar este moderno (e seus desdobramentos a partir dos anos 1970) no Brasil é o que tem feito, com grande empenho e argúcia, o performer e professor-doutor Lucio Agra (dá aulas na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, no Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas – Cecult). 

Há algum tempo, Agra vem aproximando em suas análises as vanguardas europeias nos seus vários campos de atuação (cubo-futurismo, Bauhaus, dadá, Merz de Kurt Schwitters etc.) das explorações modernas brasileiras, particularmente o concretismo (tanto na poesia, quanto nas artes visuais), mas avançando em sua visão até o pós-tropicalismo e chegando às ações performáticas contemporâneas.

Resultado desse esforço de compreensão e estudo – que incluiu, inclusive, viagem de pesquisa à Alemanha – é o seu livro “Monstrutivismo: reta e curva das vanguardas” (SP, Ed. Perspectiva, 2010) no qual o termo de Schwitters foi apropriado e expandido por Agra, para analisar a produção cultural que vai de fins dos anos 1960 aos 70 no Brasil: o cinema de invenção (ou marginal) de Sganzerla & Bressane; o cinema trash de Zé do Caixão; o jornalismo contracultural de Torquato Neto, na sua coluna “Geleia Geral”; os superoitos de Ivan Cardoso; a revista “Navilouca” e o primeiro livro de Waly Salomão (“Me segura qu’eu vou dar um troço”); os ambientes/instalações de Hélio Oiticica. O monstrutivismo, segundo Agra, “é uma estética da montagem (cubista/construtiva) e da junção caótica (dadaísta, tropicalista, marginal)”. 

Agora, Agra dá continuidade a suas explorações e pesquisas no volume “A síntese imprevista – arte de invenção no Brasil dos anos 60/70” (Curitiba, Ed. Medusa, 2022), trabalho que, segundo ele, “tem nexos com “Monstrutivismo” no sentido de que segue o “acerto de contas” lá proposto, mas agora com o vislumbre dos marcos históricos que o antecedem”. Ou seja, busca identificar, revelar e analisar as raízes que influenciaram e originaram as invencionices construtivo-anárquicas dos monstrutivistas (ou brutalistas, valeria dizer também) focados no primeiro livro.

Trata-se de um extenso campo de pesquisa histórico-cultural em que alguns outros estudiosos e mesmo artistas têm atuado positivamente também, como Gonzalo Aguiar, Rogério Camara, Christopher Dunn, Paulo Bruscky, Eduardo Kac, João Bandeira, Ricardo Araújo, Paula Braga, Frederico Coelho, Iris Rost etc. Lembre-se, ainda, como pioneiros nessa área, Ronaldo Brito, Celso Favaretto, Lúcia Santaella, Arlindo Machado e Maria Alice Milliet, entre outros. Igualmente, é de menção obrigatória o nome do importante crítico-ensaísta britânico Guy Brett, pelo seu livro “Brasil experimental”.

Destaque no livro de Agra são suas investigações relativas a Rogério Duprat e outros músicos eruditos do grupo Música Nova, incluindo a “passagem” deles pela Universidade de Brasília (com a criação de um “departamento de música”, no início dos anos 60), projeto interrompido pelo golpe militar no Brasil, com demissões de funcionários e professores – episódio sobre o qual as informações são escassas e ainda incompletas, como reconhece o próprio autor. 

Outro destaque: quando Agra faz uma espécie de “exumação” do bastante desconhecido M.A.R.D.A. (Movimento de Arregimentação Radical em Defesa da Arte) – o nome irônico-crítico já diz tudo – sobre o qual as informações são também escassas. Trata-se de um brevíssimo movimento de agitação, pós-Música Nova e pré-tropicalismo (1965) – algo anárquico e já contracultural –, “em defesa do mau gosto e contra qualquer critério de juízo”, segundo Duprat, que o integrava juntamente com Décio Pignatari e mais alguns outros. Uma espécie de “guerrilha artística” (Pignatari publicaria na imprensa uma teoria com este nome, mais adiante, em 1967) ou luta estética pelo avesso: fizeram vários happenings debochados (o que hoje seriam performances) em cemitérios e em estátuas públicas de São Paulo.

Mas há muito mais no livro de Agra a ser lido, pensado e meditado. Vários leques e links cujo eixo é sempre a arte (ou antiarte) de invenção: antropofagia oswaldiana, dadá, as ideias de Mário Pedrosa, Brasília, o projeto construtivo brasileiro na arte (Aracy Amaral dixit). Ainda Oiticica, a dialética rigor/acaso, Cage, o provável & o precário. Até mesmo uma “recanibalização” poética – a antologia sincrônica de Haroldo de Campos como proposta descolonizadora – com Agra se embrenhando, audaciosamente, num cipoal teórico-informativo. E chega de spoliers. Quanto mais rápido o interessado for ao volume, melhor. 

Livro instigante, como o anterior “Monstrutivismo”, este “A síntese imprevista” traz a inteligência e a inquietação de seu autor, que mobiliza bibliografia selecionada e informações precisas e preciosas, colhidas em várias fontes, sem hierarquias. Agra não conclui ou fecha suas investigações. Pelo contrário. Deixa, propositalmente, talvez provocativamente, em aberto alguns pontos, quem sabe levando em consideração os paradoxos e contradições do processo moderno no Brasil, que gerou toda essa arte de invenção, original e ousada, cada vez mais reavaliada por aqui e até internacionalmente.            

 

 

SOBRE CARLOS ÁVILA

 

Carlos Ávila com Lucio Agra

 

Carlos Ávila (Belo Horizonte/MG, 1955) é poeta e jornalista. Publicou cinco livros de poesia: Aqui & Agora (BH, Edições Dubolso, 1981), Sinal de Menos (Tipografia do Fundo de Ouro Preto, 1989), Bissexto Sentido (SP, Ed. Perspectiva, 1999 – Coleção Signos), Área de Risco (SP, Lumme Editor, 2012) e Anexo de Ecos (BH, Edições Poliedro, 2017); um volume de crítica: Poesia pensada (RJ, Ed. 7Letras, 2004) e o infanto-juvenil Bri Bri no Canto do Parque (SP, Ed. Scipione, 2012). Publicou também três plaquetes: LOA aos pequenos lábios (Brasília, Edições Civilização Arcaica, 1999), Obstáculos (BH, Memória Gráfica, outono de 2004) e Azul & verde (BH, Tipografia do Zé, 2017).

Foi editor das revistas I (BH, 1977) e Duas Palavras (BH, Biblioteca Pública Estadual, 1984-85). Trabalhou na Editoria de Pesquisa do jornal Estado de Minas e em assessorias de comunicação; foi colunista do Diário de Minas e colaborador do Hoje em Dia. Colaborou também com poemas, ensaios e resenhas em publicações como Poesia em Greve, Qorpo Estranho, Muda, Código, Folha de S.Paulo, Nicolau, Atlas, 34 Letras, Bric-a-Brac, Revista da USP, O Tempo, Inimigo Rumor, Jornal da Tarde, CULT, Et Cetera, Coyote, Sibila etc. Participou de diversos encontros e seminários, como Artes e Ofícios da Poesia (São Paulo, 1990), A Palavra Poética na América Latina (São Paulo, 1990), Festival de Inverno da UFMG (Belo Horizonte, 1991), Perhappiness (Curitiba, 1992), 30 Anos da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda (Belo Horizonte, 1993), Poesia 96 (São Paulo, 1996), O Veículo da Poesia encontro de periódicos literários (São Paulo, 1998), Literatura de Viagem (Tiradentes, 1999), 2o Seminário de Arte (Escola Guignard, Belo Horizonte, 2000), Geração 80/90 (Itaú Cultural, Belo Horizonte, 2002) etc. Escreveu textos para publicidade, roteiros, projetos culturais, apresentações de artistas plásticos e um poema para o filme O Poeta no Viaduto, de Helvécio Ratton; participou do CD-ROM da Folha de S.Paulo (edição de 1998) lendo seu poema “Baudelaire sob o sol” e do projeto Arte no Ônibus com o poema-cartaz “Bus” (Belo Horizonte, 2001).

            Ávila, que está presente também em diversas antologias no Brasil (entre elas, Na Virada do Século) e tem textos traduzidos no México, Estados Unidos e França, foi um dos poetas selecionados e publicados no volume Nothing The Sun Could Not Explain (20 Contemporary Brazilian Poets) — editado pela Sun & Moon Press (USA, Los Angeles, 1997; 2. ed.: 2003). Foi incluído, recentemente, na “Anthologie Internationale de Poésie Contemporaine – poesie intraitable” (França, Le Presses du Réel, 2022), em tradução de Inês Oseki-Dépré.  

      “Seu poema “Mais uma vez” foi musicado por Gilberto Mendes e “Obstáculos” por Willy Corrêa de Oliveira – dois dos mais importantes compositores de música erudita no Brasil. “Perdido entre signos” foi considerado por José Lino Grünewald uma das “pedras de toque” da poesia brasileira. Seu trabalho poético foi tema de ensaios e artigos de José Paulo Paes (incluído em seu livro Os Perigos da Poesia), Maria Esther Maciel, Antônio Sérgio Bueno, Noemi Jaffe, Aurora Bernardini e Vera Lins. O arquiteto Júlio Katinski transformou seu poema “O Sol” em um objeto plástico na exposição Relerever, realizada em São Paulo em 2000. A revista espanhola Sena publicou seis textos do poeta em 2001.

Por quatro anos (1995-98) Carlos Ávila foi editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, quando renovou inteiramente a publicação – por este trabalho, foi finalista do Prêmio Multicultural Estadão, de 1999, realizado pelo jornal O Estado de São Paulo. Foi técnico do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA/MG) e é redator free-lancer. Trabalhou também na Rede Minas de Televisão e foi editor do caderno de cultura do jornal Hoje em Dia. Escreveu (entre 2014 e 2017) uma coluna semanal sobre cultura e literatura na revista on-line Dom Total. Participou, em 2017, do júri do Prêmio Oceanos de Literatura. 

Segundo Haroldo de Campos, Ávila “se mostra capaz de pedra grossa e lavra fina. Construção rigorosa sensibilizada pela emoção; uma emoção que se filtra no constructo material das palavras como água de fonte em poros de rocha”.