Slager, Henk. 2015. The Pleasure of Research. Ostfildern: Hatje Cantz. <https://www.hatjecantz.de/the-pleasure-of-research-6412-1.html>

 

A obra sobre investigação artística em relação à qual produzimos este comentário, filia-se substancialmente no campo que lhe é próprio, ou seja, trata-se de uma investigação que emana da experimentação efectiva com processos artísticos. A razão pela qual iniciamos a apreciação global com uma referência à natureza do texto em análise (que se encontra liberto de fundamentações extra-artísticas e que se demarca intencionalmente de compromissos com a filosofia da arte, da estética, ou da teoria da arte), justifica-se pelo excesso de dependência para com estas formas de reflexão que observamos em muitos textos sobre investigação artística. De facto, em qualquer um dos dez capítulos desenvolvidos por Henk Slager, o autor procura na própria elaboração das práticas artísticas e na disposição dos elementos que dão forma e sentido aos objectos e situações apresentadas, o conjunto de noções criativas e a fundamentação para o que é afirmado sobre a investigação artística, revelando uma expressiva independência relativamente a aparatos conceptuais externos, perigosamente homogeneizantes e usurpadores da vitalidade da própria criação artística.

A nosso ver, esta preocupação manifestada por Henk Slager deveria orientar qualquer texto que pretendesse tratar com “autenticidade” a investigação artística, deixando assim, por contraste, espaço em aberto para outras possibilidades investigativas, justamente aquelas que se caracterizam por uma partilha argumentativa na qual confluem noções artísticas e fundamentos extra-artísticos, como se verifica na investigação sobre artes e até em certas modalidades de art-based research que associam a prática da investigação artística aos domínios da estética, da filosofia de arte, ou de outros campos eminentemente teóricos. Para explicitar um pouco aquilo que estamos a afirmar, diremos que no limite se pode conceber uma relação de reciprocidade entre investigação artística e investigação sobre artes (com base na estética e na filosofia de arte), porém, a “regra do jogo” desta reciprocidade terá de ser produzida e proporcionada pela própria investigação artística e nunca pela filosofia de arte, que será subordinada à investigação artística segundo um determinado grau de respiração e autonomia. Tal como na situação inversa, isto é, se imaginarmos um discurso emanado pela investigação sobre artes, a regra surgirá dos domínios teóricos que a caracterizam, ficando a produção e a investigação artística submetida aos mesmos, segundo diferentes graus de autonomia.

Expostos estes aspectos relativos à natureza da narrativa de Henk Slager e à peculiaridade da argumentação do livro, a escolha do respectivo título ganha assim outra luz, pois, a referência à “dimensão do prazer” que o mesmo transporta, diverge abertamente das metodologias clássicas da investigação artística (que há cerca de trinta anos tinham invariavelmente traços de investigação sobre artes). Esta narrativa aponta agora para uma investigação na qual só faz sentido investigar com a expectativa de uma gratificação singular, a saber: o prazer que um artista/investigador recolhe durante um processo relativamente longo de trabalho, reconhecendo-se a si mesmo de modo integral, tanto naquilo que realiza como naquilo que pensa, vendo espelhada na produção apresentada as marcas das metamorfoses da sua identidade pessoal (que é inalienável), e os vestígios da conquista das suas linguagens criativas (que são insubstituíveis). A nosso ver, a dimensão do prazer que ecoa na expressão The pleasure of research faz também referência ao “alívio” de não sermos forçados—pela Academia ou por outra instância inibidora—a investigar numa atmosfera de dependência relativamente a “saberes” produzidos fora do tempo de gestação do próprio processo artístico, como se fosse um “outsourcing” indesejado, algo que até pode ter certas “afinidades electivas” com a produção criativa em causa, mas que não é intrínseco à mesma—por exemplo, explicitar abusivamente a interacção experienciada numa instalação de investigação artística com categorias da fenomenologia transcendental de Edmund Husserl, ou a fenomenologia do corpo preconizada por Merleau-Ponty.

Esta intenção de demarcação relativamente aos “saberes” da filosofia, da estética e da teoria de arte—dizemos intenção por considerarmos que Henk Slager enfatiza metodologicamente essa possibilidade efectiva de distância—realiza-se nesta obra com a apresentação de diversas noções de investigação artística, às quais nos iremos referir no parágrafo seguinte, de curadoria e de instalação dessa mesma investigação. Porém, o autor não deixa de estabelecer uma certa reciprocidade com filósofos que pensam de modo particularmente criativo e que muitas vezes tomam a produção artística como tema central das suas preocupações, a saber Nietzsche, Roland Barthes (nomeadamente com Gaya Scienza e The Pleasure of the Text, respectivamente, para os quais The Pleasure of Research subtilmente reenvia), ou então Deleuze, autor com o qual Henk Slager não hesita em evidenciar empatia, sem que, contudo, isso afecte a autenticidade das noções que são próprias à investigação artística. Por exemplo, no quarto capítulo, “Methodological Mapping”, não se inibe de citar um autor com reverberação deleuziana, John Rajchman: […] o processo de pensamento sobre a arte é fundamentalmente extra-territorial. Ou, para utilizar o idioma de Deleuze, o pensamento é sempre desterritorializante de forma absoluta, para o qual não há regresso possível”. (itálico no original).1 Com este paralelismo, pretende apenas destacar uma certa “oscilação” que se pode experienciar entre a “produção de conhecimento artístico” (artistic knowledge production) e o prazer do processo de reflexão (the pleasure of the process of thinking). A relação estabelecida com a reflexão filosófica também tem momentos de divergência, como se verifica no penúltimo capítulo, momento em que Henk Slager se afasta da “noção de arquivo” e do “dispositivo de poder” de Michel Foucault para dar lugar a uma “crítica da razão arquivística” (a critique of archival reason), designação do projecto expositivo com a sua curadoria, em Dublin, na Royal Hibernian Academy, em 2010, no qual se pensa artisticamente a tarefa instalativa de arquivar, como pode ser observada nos projectos Tie: Place and Symbols de Shoji Kato, ou Index de Sean Snyder.

Vejamos, de modo sintético, as noções centrais, ou melhor, as noções rizomáticas (adoptando o discurso do próprio Henk Slager, “O pensamento artístico, como forma de pensamento rizomático puro, separa a investigação artística de concepções sedentárias e arborescentes do conhecimento”),2 que atravessam os dez capítulos do livro. Entre várias categoriais sugeridas no livro, escolhemos as seguintes: “estéticas experimentais”; “pensamento artístico”; “ambientes laboratoriais”; “práticas criativas de conhecimento” (partilhada com a investigadora Irit Rogoff); e “arquivamento artístico”. Trata-se de um conjunto de noções extremamente denso e interdisciplinar, que suspeita das metodologias apriorísticas de investigação e, como consequência desta posição de princípio, a atitude perante a necessidade das categorias é claramente anti-académica, embora “invista” a sua energia disruptiva e torne extensiva a sua interpelação aos meios académicos. Nomeadamente, às instituições nas quais funciona o terceiro ciclo (PhD) de ensino artístico superior, como podemos verificar no cap. I, “Temporary Autonomous Research”, com referências ao Processo de Bolonha,3 ou no cap. II, “As the Academy Turns”, com os exemplos aí desenvolvidos e as referências ao projecto Agonistic Academies (com uma publicação, em 2011, da qual Henk Slager é co-editor).

Derivadas da fecundidade dos projectos explanados no livro e da visão de futuro para a investigação artística menifestada por Henk Slager, as noções acima elencadas constituem um contributo decisivo para a dignificação da reflexão artística no meio académico, provocando a erosão de procedimentos restritivos que caracterizam o mundo académico, abrindo espaço para a exigência de uma investigação profunda, mas livre de constrangimentos doutrinais da estética (por isso a investigação artística é projectada como “estética experimental”), que seja independente de mediações protocolares e periféricas à autenticidade do seu labor. A investigação artística torna-se ainda laboratorial e confluente com práticas investigativas não-artísticas (ou menos criativas), desconstruindo, por um lado, os seus próprios métodos, mas abrindo também fendas nos métodos alheios, a partir de um princípio de desconstrução inteligível, argumentável e passível de exposição ao outro da discussão, na dupla acepção de algo que se expõe: isto é, expõe-se como conjunto de “arquivos”, argumentos e noções às faculdades humanas para juízos teoréticos, mas também se expõe ou instala criativamente num determinado espaço para uma valorização e diferenciação de outros objectos de conhecimento, despertando juízos artísticos e estéticos da comunidade para a qual esse conjunto de “objectos” tem alguma significação.

Para o pleno funcionamento deste conjunto dinâmico de noções, o livro constrói-se a partir de um rede fluida de reenvios entre simpósios, exposições colectivas e edições de ensaios sobre investigação artística, resultando daí uma consistência projectual (e doutrinal) que já vinha a desenhar-se desde 2006 com a criação da plataforma EARN (em conjunto com Jan Kaila e Gertrud Sandqvist), por intermédio de múltiplos projectos tais como Art as a Thinking Process (Veneza 2011), ou Staging Knowledge (Istambul 2012), ou já posteriormente a 2015, ano da edição de The Pleasure of Research, com outras publicações e projectos, nomeadamnete as parcerias que são desenvolvidas com a Uniarts Helsinki’s Academy of Fine Arts, em particular com os investigadores Jan Kaila , Anita Seppä, e Mika Elo, para a concepção dos Pavilhões da Investigação artística (Research Pavilion) de Veneza que já vão na terceira edição (2015, 2017, 2019). De facto, a coordenação e a co- coordenação destes projectos curatoriais e destas edições tem o mérito de introduzir a investigação artística em espaços a frequentar por um público cada vez mais alargado, razão mais do que suficiente para se ler atentamente a obra de Henk Slager que aqui evocamos.

Porém, aquela rede de reenvios entre simpósios, exposições e publicações sobre investigação artística, também é geradora de alguns equívocos, merecendo da nossa parte algumas objecções àquilo que é veiculado neste livro por Henk Slager. Sendo mais precisos, diríamos que há três críticas que podem ser dirigidas a este autor, a saber: (1) a articulação entre os simpósios e as publicações com os projectos curatoriais nem sempre permite aferir a real densidade da materialização das propostas de investigação apresentadas; (2) por vezes verifica-se uma certa indiferenciação entre exposição de arte e exposição de investigação em arte; (3) a natureza dos projectos artísticos e investigativos apresentados tende a ser homogénea nos seus vestígios fotográficos. Ou seja, exceptuando algumas performances como a telenovelaAs the Academy Turns4 de 2010, e de certas projecções das quais recebemos testemunho fotográfico, as características dominantes dos projectos artísticos assim registados, tendem a ser instalações muito homogeneizadas nos seus dispositivos visuais, com forte pendor documental—tendencialmente assépticos—seriamente comprometidos com as noções de “arquivismo”, “vitrinização”, e outras afins, faltando, a nosso ver, um horizonte mais alargado de possibilidades plásticas e instalativas, no fundo, de experimentação menos condicionada pela imersão laboratorial e menos devedora de uma “crítica da razão arquivística.

No entanto, e assim concluiremos a apreciação crítica do livro de Henk Slager, esta publicação contribui para tornar mais robusta a investigação artística, permitindo aos respectivos leitores—e visitantes dos projectos mencionados na mesma—, um entendimento e uma interiorização deste fenómeno investigativo que, tendo atrás de si um caudal de trinta anos de reflexão e agonística, ainda necessitará de outros tantos para se afirmar de forma inteiramente autónoma.

 

José Quaresma

Lisboa, 16 de Novembro, 2019

O autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

 

Biografia

José Quaresma (1965). Vive e trabalha em Lisboa.

Licenciado em Pintura pela ESBAL. Mestrado e Doutoramento em Estética e Filosofia de Arte pela F.L.U.L. É Prof. Auxiliar na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Tem coordenado publicações nos domínios da Investigação em Arte; Esfera Digital; Arte Pública; Reprodutibilidade e Tecnologia; Chiado e Património. Tem organizado regularmente Ciclos de Conferências nacionais e internacionais sobre as áreas acima indicadas. Organiza com frequência exposições de Arte Pública, Instalação, Gravura, outras. Expõe pintura, desenho, e gravura desde 1982.

  • 1John Rajchman, “Art as a Thinking Process, New Reflections”, in Art as a Thinking Process, Angela Vettese & Mara Ambrozic, (eds), New York, 2013, p.196. (Tradução nossa).
  • 2Henk Slager, The Pleasure of Research, Ostfildern, ed. Hatje Cantz, 2015, p.43. (Tradução nossa).
  • 3“The implementation of the Bologna Process in higher art education signifies a real paradigm shift in the reflection process upon art production as such. Thinking in terms of creation, creative capacity, studio, and talent is no longer accentuated. What is at the core of the current discourse are artistic constructions and interdisciplinary activities which, going ‘beyond the studio’, seem to be able to occur anywhere if they can adequately connect or respond to a given or required context. Topical visual art, then, shouldmost of all be ‘research-based’ and ‘context-responsive’”. Henk Slager, ibidem, p.7.
  • 4“The soap As the Academy Turns [sic] brings together two diverging poles. On the one hand, it addresses contemporary artistic practice, and autonomous artistic research and production as outcomes of art education. On the other hand, it presents the art academy ‘remodeled’ as a product of the entertainment industry in the context of popular daytime television serving a mainstream, hedonistic, neo-liberal, consumerist ideology. Elements of critique and of hoax are brought together through the soap opera form so that the genre’s exaggerated dramatic style subverts and deconstructs popular views on higher art education”. https://manifesta.org/2010/10/as-the-academy-turns/